O ano é 2014, a empresa Uber chega no Brasil com uma primeira inserção mal percebida por seus maiores concorrentes: os taxistas. Na percepção destes não havia muitos motivos para preocupações, afinal, uma licença disposta no seu para-brisas garantia o monopólio da prestação do serviço e um comodismo para perpetuação de práticas antigas. Ocorre que o novo serviço entregava o mesmo com muito mais valor [1] e o resultado conhecido foi inevitável.
Mas afinal, o que tem a ver esse exemplo com o tema do texto? A resposta é simples: é que a relação Uber e Táxis (assim como Netflix; AirBnB etc.) demonstra que o que garante o protagonismo de um negócio na era digital é o valor do serviço prestado a quem o usufrui e não os postulados que preveem o seu funcionamento.
Ou seja, no mundo moderno, marcado por uma revolução tecnológica sem precedentes, instituições de todos os setores enfrentam o desafio de se adaptar ou ficar para trás e o Estado, em todas as suas formas, não está imune a essa transformação.
O exemplo do governo federal
Esta transformação digital tem como lado mais claro a disponibilização de serviços, outrora exclusivamente analógicos, na versão digital. O exemplo mais frutífero desta iniciativa é a do governo federal, que num trabalho que vem sendo feito com maestria na plataforma gov.br, lançada em agosto de 2019 [2], e que já ultrapassou mais de quatro mil serviços disponibilizados, alcançando em abril de 2023 mais de 155 milhões de pessoas físicas (quase 76% da população brasileira) [3], com 813 milhões de acesso num único mês [4].
Conclusão interessante destes dados é que, cada vez mais, faz menos sentido a fala genérica de que os serviços digitais são excludentes da população não digitalmente inserida por dois principais motivos: (a) a população digitalmente excluída é cada vez menor. O serviço digital mais popular do Brasil, o aplicativo de mensageria WhatsApp, abrange hoje 93,4% da população [5] (e 95% das empresas); (b) A oferta do serviço digital é uma alternativa a ser colocada à disposição do cidadão, sendo complementar aos meios tradicionais e não concorrencial.
Ou seja, como diz o professor Silvio Meira, o mundo atual é “Figital”, conceito utilizado para explicar uma realidade em que a distinção entre espaços físicos e digitais se torna cada vez mais tênue.
O sucesso da plataforma gov.br não se limita apenas ao número de serviços disponibilizados ou ao volume de acessos. Representa uma mudança fundamental na relação entre o Estado e os cidadãos, democratizando o acesso aos serviços públicos e remodelando a expectativa dos cidadãos.
Justiça 4.0
E não apenas no Executivo a agenda digital tem merecido especial dedicação. O Conselho Nacional de Justiça tem investido no Programa Justiça 4.0 já há alguns anos e, após a assunção ao cargo do Ministro Presidente Luís Roberto Barroso, a aceleração tem sido notável, com reforços nas áreas de inovação e inteligência artificial, que prometem uma aceleração na adaptação digital do Poder Judiciário, conhecido como um setor mais conservador, o que não parece ter tanto amparo na realidade.
MP Digital
O Ministério Público brasileiro não está alheio a essa mudança social e tem enfrentado desafios e oportunidades significativas diante do avanço do mundo digital.
Apesar de algumas iniciativas notáveis e inspiradoras, há espaço para uma maior adaptação e integração às novas tendências digitais. Foi justamente esse cenário que motivou o Conselho Nacional do Ministério Público a criar a Estratégia Nacional do MP Digital, vinculada à Comissão de Planejamento Estratégico, com os objetivos de: estimular, difundir e criar condições para o desenvolvimento tecnológico e de práticas inovadoras; construção de uma plataforma de colaboração nacional, que concentre as principais informações e dados sobre o tema; e fomentar a atuação em rede para o enfrentamento colaborativo de problemas.
Essa estratégia nacional é dividida em cinco grandes grupos de trabalho: Base de dados processuais do MP Brasileiro; Base de dados para atuação; Serviços de integração tecnológica; Catálogo nacional de compras de TI e Inovação; e Rede Nacional de Inovação.
Para além dos serviços internos, uma das grandes missões do MP Digital é impulsionar o estabelecimento, em cada ramo e unidade, de um Estratégia Digital definida e documentada, a fim de que membros e servidores possam se dedicar mais ao estratégico e humano; a atuação orientada a dados, a fim de que a participação do MP nas políticas públicas ocorra de forma mais assertiva e efetiva; e o estabelecimento de serviços digitais adequados e que potencializem o alcance ao cidadão.
Inovação e o vanguardismo do MP
Pretende-se que a adaptação digital imposta na atualidade alcance de forma mais rápida e uníssona todo o Ministério Público brasileiro, a fim de que o protagonismo institucional seja preservado pelo valor que se entrega à sociedade e não por postulados que podem não ser respeitados por inovações tecnológicas que atendam aos anseios da era digital.
Antes que se diga que isso é distopia distante, é bom lembrar que hoje existem excelentes LawTechs com plataformas de resolução de disputas online (as ODRs) que já têm conduzido litígios para fora do exercício sistema de justiça e que deveriam gerar o seguinte estranhamento: “será que este é o Uber do meu setor?”.
O cenário, contudo, não é de pessimismo, pois o Ministério Público pode se socorrer de exemplos do passado para pavimentar os passos que deve dar rumo ao futuro, uma vez que foram a inovação e o vanguardismo que tornaram o MP brasileiro protagonista como é, de forma peculiar no mundo: única instituição em que além da clássica atuação na persecução penal, também é responsável pela defesa dos direitos coletivos: saúde, segurança pública, meio ambiente, consumidor, infância e juventude, constitucionalidade etc.
Isso ocorreu pela visão de futuro, coragem e postura inovadora de membros que, antes mesmo da própria Constituição de 1988, trilharam esse caminho, moldando o MP àquilo que era a demanda social da época, e permitiram através da agregação de valor entregue à sociedade um maior protagonismo institucional, mostrando que a inovação está no DNA da Instituição.
Para que mudar?
Por certo, deve ser recordado que as frases ditas pelos ora resistentes às adaptações digitais também não eram raras na oportunidade: “Para que mudar? Sempre foi assim”… “Devo estar ficando velho, pois no meu tempo…”, todavia, a coragem de fazer as mudanças necessárias para adaptar o MP ao seu tempo falou mais alto.
Mais uma vez, vive-se um ponto de inflexão, desta vez impulsionado por um mundo em constante mudança na era digital e os temas difíceis trazidas pela era digital (tais como adoção da inteligência artificial, modernização das relações de trabalho, oferta de serviços digitais e outras tendências tecnológicas) devem ser olhados como são no mundo em 2024, para não correr o risco de que a romantização de práticas possa obstar a conclusão de que elas estejam necessitando aprimoramentos e modernizações.
Com uma abordagem estratégica, responsável e inovadora, o Ministério Público pode não apenas preservar, mas fortalecer seu protagonismo institucional, entregando ainda mais valor à sociedade brasileira. O futuro do Ministério Público na era “Figital” é promissor, e cabe a todos os envolvidos abraçar essa jornada com coragem, determinação e visão de futuro.
[1] MELLO, Cláudio Ari. O futuro da mobilidade urbana e o caso Uber. Revista de Direito da Cidade, UERJ, Vol. 08, nº 02, 2016, p. 781. Disponível em: file:///C:/Users/b31284/Downloads/22029-73209-1-PB.pdf. Acesso em: 24/08/2016.
Autores:
Moacyr Rey Filho
é conselheiro nacional do CNMP.
José Eduardo Sabo Paes
é procurador de Justiça do MP-DF.
Guilherme A. Pacheco Zattar
é promotor de Justiça do MP-SC.
Artigo originalmente publicado em https://www.conjur.com.br/2024-fev-03/desafios-e-oportunidades-do-mp-diante-do-avanco-do-mundo-digital/
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